Prefeituras mineiras, inclusive a de Belo Horizonte, estão sendo procuradas por supostos representantes comerciais com ofertas para a compra de vacinas contra a Covid-19. A suspeita é de um golpe. A partir de e-mails enviados a alguns desses municípios, a reportagem decidiu investigar quem são esses intermediários e como funcionaria o esquema ofertado por eles. O ponto de partida foi justamente um e-mail enviado à uma prefeitura da Região Metropolitana de Belo Horizonte.
"Prefeito, foi relatado que a prefeitura não está conseguindo comprar a vacina contra a Covid-19. Diante do relato, informo que temos em estoque a quantidade para atender a requisição, só não posso garantir por muito tempo, porque a demanda é muito grande". O autor do e-mail com a proposta é o autônomo J. D. D. G., de 51 anos. Na mensagem, ele não apresenta qualquer ligação formal com farmacêuticas ou com empresas do mercado de medicamentos, levantando dúvidas sobre a legitimidade do negócio. O modo de abordagem do suposto agente, conforme apurou a reportagem, se repetiu com outras prefeituras e até com governos estaduais.
Carta LOI - como funciona o esquema
Para checar esse esquema por trás das ofertas, por duas semanas, me apresentei aos negociadores supostamente com acesso às vacinas como servidor da fictícia Prefeitura de Juatuba do Norte. No primeiro contato com J. D. D. G., em que me coloquei como chefe de gabinete do município fictício, ele afirmou que as negociações para a compra da vacina eram simples e que, após apresentar uma "LOI" (em inglês "Letter of Intent", e em português traduzido como "Carta de Intenção"), a empresa produtora da vacina, a americana Davati, iria avaliar e retornar com o contrato de compra.
"A gente tem uma carta, a carta LOI, que é quase que um pré-contrato, a gente manda dois formulários em inglês, o prefeito assina, e a gente apresenta. Em quinze dias tá no aeroporto, chega no aeroporto e só aí tem o pagamento, é segurança para quem tá vendendo e quem tá comprando. Podem chegar em até 14 dias úteis. A última que tava tendo é a AstraZeneca, é inclusive feita no laboratório da Johnson. Você preenche esses dois formulários e você não paga nada agora, você paga quando chegar no aeroporto. É desse jeito que tá funcionando. Mas tem que olhar lá pra ver se tem a quantidade que você quer", disse, por telefone, o suposto representante (ouça aos áudios ao final da matéria).
J. D. D. G. é um comerciante de classe média de 51 anos, morador de Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Em suas redes sociais, ele compartilha constantemente informações falsas sobre a pandemia e política. No final de 2020, publicou, inclusive, textos questionando a efetividade das vacinas contra a Covid-19. Em seu nome estão duas empresas, uma pequena cooperativa de transporte de cargas e passageiros por aplicativo, onde atua como diretor financeiro, ao lado de parentes, e uma empresa individual de comércio varejista. Ao rastrear o seu número de celular pela internet, também se encontra uma "agência de envio de SMS em massa".
"Sopa" de vacinas
O flagrante desconhecimento do vendedor sobre a vacina, que supostamente representa, impressionava, além de sequer buscar mais informações sobre "Juatuba do Norte" no decorrer das conversas. Em certo ponto da "negociação", J. D. D. G. passou a afirmar que o imunizante havia sido produzido em uma parceria entre a "Davati, com a Johnson e a universidade de Oxford" - o homem, na verdade, misturou informações de três vacinas diferentes. A preocupação de J. D. D. G., desde o início, era basicamente receber a LOI assinada pela prefeitura. "A procura tá grande, eu liguei pro distribuidor e ele disse que tinha 20 milhões de doses, o mundo inteiro tá procurando, então tem que ser rápido, mas consigo só acima de 50 mil doses, por questão de transporte e logística. É só enviar a LOI", promete.
“Confere em São Paulo”
Quando questionado sobre a documentação para provar que realmente representava uma empresa do ramo de vacinas ou que, no mínimo, mantinha contato com uma farmacêutica, J. D. D. G. se enrolava ainda mais. O homem passou a dizer que fazia uma parceria com um outro representante, este de São Paulo, de nome A. A. F. C. J., que teria, este, o contrato com a empresa Davati. "Pode pedir o seu jurídico para consultar com a Prefeitura de São Paulo sobre a nossa seriedade, pode fazer a pesquisa", garantia J. D. D. G..
Em contato com a reportagem, a prefeitura da capital paulista negou qualquer contrato ou conversas com os negociadores e as empresas citadas por eles. "A Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo, informa que não firmou contrato com intermediários ou representantes para a compra de vacinas. Assim como, nenhum dos setores da Administração Municipal possui qualquer contrato com os citados pela reportagem. O diálogo da pasta da Saúde tem se mantido diretamente com as sedes brasileiras dos laboratórios que produzem os imunizantes, demonstrando sua intenção de compras", pontuou a gestão de Bruno Covas (PSDB).
Parceria com a Davati
Confrontado com a mensagem da prefeitura paulista, J. D. D. G. manteve a história e seguia garantindo que a empresa mantinha negociações com São Paulo para a compra de vacinas. "Uai, estranho, vou checar isso, às vezes é alguém não querendo repassar informação, segurando coisa. Vou confirmar e te retorno". Ele não retornou com documentações, mas enviou o link de uma matéria publicada no portal da prefeitura sobre negociações com a Johnson, alegando, ainda, que a Davati, empresa que ele representaria em Minas, participou do negócio. "Se você pesquisar, a Davati foi a pioneira junto com a Johnson a desenvolver a vacina contra a covid. Eu vi isso em algum lugar, ela foi a pioneira, eu vou achar isso aqui e mandar pra você. É difícil isso, tem que ter os links certos".
A matéria publicada pela prefeitura não cita a Davati em momento algum (leia aqui), assim como a empresa americana não é reportada em nenhum outro portal como uma representante para a venda da vacina contra a Covid-19. "Não tá escrito Davati lá, mas quem fez o trabalho por trás dos bastidores é a Davati", garantiu.
A Davati Medical, situada no Texas, é, na verdade, uma companhia focada na venda de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) médicos e somente duas vacinas: a da Influenza, a gripe normal, e o anti-viral Remdesivir, usado normalmente no combate ao Ebola. "Não tem a vacina do covid no site deles, mas igual eu te falei, foi feito uma parceria no início da pandemia com a Johnson e Davati, lá na faculdade de Oxford, e eles foram pioneiros em desenvolver essa vacina", continuava argumentando o suposto vendedor.
Colecionador de LOIs
A partir da falta de informações de J. D. D. G., fiz contato com o representante em São Paulo, A. A. F. C. J., que também garantia a seriedade do negócio. Ao responder o contato pelo WhatsApp, constava que o nome do vendedor no aplicativo era "POLISHOPCOMVC/LOJASOUZAC", indicando que o telefone do suposto intermediador para a compra de vacinas também funcionava como atendimento de uma grande rede de varejo.
Assim como o vendedor mineiro, A. A. F. C. J. insistia para a produção e envio da LOI por parte da Prefeitura de Juatuba do Norte. "Eu tenho 92 LOIs de municípios e de 6 estados, eu não posso ficar te passando porque isso é venda confidencial. Eu compreendo a resistência de vocês, mas é a forma que nós trabalhamos. Se tiverem interesse em mandar a LOI, nós mandamos toda a documentação. Toda negociação começa com a LOI, chegando a LOI nós mandamos toda a documentação. Desde que venha a LOI, não tenho como mandar a documentação sem a carta de interesse. É assim que funciona", disse, "explicando", ainda, que a Davati possui as vacinas porque conseguiu, no início da produção da pesquisa, acertar a compra de 200 milhões da Johnson e 200 milhões da AstraZeneca.
A. A. F. C. J. é um empresário paulista com empresas registradas na cidade de Itu, na região metropolitana de São Paulo. Ele possui uma distribuidora de gás de cozinha e uma empresa de representação de alimentos. Questionado com a nota da Prefeitura de São Paulo, ele desconversou sobre o assunto, indagando quem teria enviado o texto e negando que fosse verdade. “Estão te enganando aí”.
Em uma nova tentativa de tentar se mostrar como um representante real da empresa, A. A. F. C. J. enviou um documento, escrito em inglês, em que a Davati supostamente confirmava que um de seus sócios seria autorizado pela empresa a intermediar negócios. O arquivo, claramente fajuto, iniciava apontando o nome do brasileiro como representante mas, no final, indicava uma empresa de Murcia, na Espanha, como intermediadora legal. Os golpistas incluíram, ainda, um selo inexistente da empresa americana utilizando como base o brasão da família imperial russa (veja abaixo).
(Rodapé da carta enviada pela Davati, com o selo falso criado pelos golpistas)
(À esquerda, o brasão da Família Imperial Russa; à direita, o selo falso criado pelos golpistas)
Empresa suspeita
A reportagem tentou contatos por e-mail e telefone com a Davati, mas não conseguiu retorno. Pesquisando mais sobre a firma americana, dúvidas também começaram a ser levantadas sobre a seriedade da própria empresa. A Davati foi criada em 2017 e, em junho de 2020, foi incorporada por um empresário americano chamado Herman Cárdenas. Todo o conteúdo de seu site oficial foi criado entre maio e junho de 2020 e possui erros crassos de português. Embora a empresa afirme possuir licença para a venda do medicamento Remdesivir, o produto pertence unicamente à farmacêutica Gilead Sciences.
Apesar de obviamente se tratarem de pessoas que não são da área e não possuírem qualquer informação válida sobre negociações de vacina, nada explicava tamanho interesse dos brasileiros em receber as LOIs, ou cartas de intenção, por parte da prefeitura, uma vez que, também, eles informavam que o pagamento só ocorreria quando as vacinas fossem entregues. "Na verdade, a gente vai ser remunerado pela Davati Medical no final das contas, mas mesmo assim, meu sócio é que olha isso. A gente não faz a venda, então eu nem to preocupado com essa remuneração, eu to preocupado só é com a chegada da vacina".
Afinal, qual o objetivo do golpe?
Mas então, como se dá o golpe dos brasileiros? O que eles fariam com esse documento a partir daí? Existem, até o momento, três hipóteses levantadas por especialistas em Direito e em investigações que foram consultados pela reportagem:
1) Os possíveis golpistas poderiam utilizar as cartas de intenção (LOI) para buscar crédito ou empréstimos junto a bancos ou terceiros utilizando o documento como garantia, demonstrando que estavam participando de uma negociação milionária;
2) Utilizariam as cartas de intenção (LOI) para negociar no mercado clandestino de vacinas, tentando provar a clientes incautos que já fizeram negociações pelo imunizante de forma "legal";
3) Ou, então, estariam tentando a sorte no mercado. Buscariam, primeiro, administrações interessadas na compra para, depois, tentar viabilizar a venda fazendo o contato com outras empresas farmacêuticas.