Há uma revolta ocorrendo no mundo. É uma revolta popular contra as instituições, contra os governos, contra os meios de comunicação, contra a ciência ("oficial"), contra os especialistas, contra os acadêmicos, contra as ONGs.
Isso tem a ver com a crise da democracia reinventada pelos modernos - aquela que se prenunciou no século 17 (com a resistência do parlamento inglês ao poder despótico de Carlos I e os Bill of Rights) e que gerou, no século 18, as variantes americana, francesa e inglesa da democracia representativa que depois se espalhou pelo mundo. É a democracia tal como a conhecemos que entrou em crise.
Diz-se que essa revolta é capitaneada pelo populismo-autoritário ou nacional-populismo de extrema-direita, uma vertente reacionária. Mas essa revolta não é necessariamente reacionária (uma revolução para trás); ou seja, um movimento para nos levar para algum lugar do passado e sim também revolucionária (para frente), para nos levar para algum lugar (pré-concebido por alguns) do futuro.
Se os governantes populistas de direita, como Orbán (Hungria), Erdogan (Turquia), Bukele (El Salvador), Netanyahu (Israel), Meloni (Itália), Fico (Eslováquia), Putin (Rússia) podem ser considerados reacionários, o mesmo, talvez, não se aplique (totalmente) a Trump (EUA), Milei (Argentina) e Modi (Índia). Entre os reacionários que pretendem governar (ou voltar ao governo), como Steve Bannon (EUA), Salvini (Itália), Kaczynski e Duda (Polônia), Bolsonaro (Brasil), Farage (Reino Unido), Le Pen (França), Ventura (Portugal), Abascal (Espanha), Wilders (Holanda), Chrupalla e Weidel (Alemanha) e Purra (Finlândia), não estão os inovadores tecnológicos antissociais como Marc Andreessen, Ben Horowitz, Elon Musk, Peter Thiel e até Vivek Ramaswamy - temporariamente aliados de Trump (não se sabe até quando). Estes últimos são revolucionários e dizer isso não é um elogio - pois que todos eles são contrários à democracia (ou não acreditam que ela funcione).
A reação a essa revolta por parte do establishment das democracias, entretanto, está piorando o problema em vez de abrir pistas de solução. O que os defensores situacionistas estão fazendo?
Em primeiro lugar estão trocando o combate ao terrorismo pelo combate ao populismo de direita (ou de extrema-direita), omitindo propositalmente o populismo de esquerda e a terrível ameaça representada pela ascensão de um eixo autocrático (Rússia, Bielorrússia, China, Coreia do Norte, Irã, Vietnam, Laos, Angola, Cuba, Venezuela, Nicarágua) às democracias liberais.
Em segundo lugar estão dissolvendo as proteções contra a desinformação russa, chinesa, iraniana, coreana do norte etc. pela desinformação doméstica (da extrema-direita) como a ameaça principal (praticamente a única) à democracia. Aí é que entram o combate às fake news, ao discurso de ódio e a criminalização de opiniões dissidentes como atentados ao Estado democrático de direito. Nossa suprema corte embarcou nessa canoa furada.
Em terceiro lugar estão tratando o populismo de direita como a mesma ameaça autoritária que o socialismo e o comunismo representaram (em alguns casos dizendo explicitamente que é a mesma ameaça do nazismo ou fascismo).
Em quarto lugar estão defendendo que a democracia precisa de grades de proteção (não importa se mais ou menos autoritárias), pois é uma questão de vida ou morte. Acham que a democracia tem de ir além daquilo em que as pessoas votam (porque as pessoas votaram em Hitler, as pessoas votaram em Trump). Por isso estão dizendo que precisamos de proteções institucionais contra as pessoas que votam nos candidatos errados. E estão chamando essas proteções de "instituições democráticas". Ou seja, estão redefinindo a democracia como consenso das instituições e não dos indivíduos. A democracia não teria a ver com a vontade dos indivíduos: ela é sobre o "consenso". Então, se houver consenso construído entre os militares, a esfera diplomática, a comunidade de inteligência, as ONGs, os meios de comunicação, as universidades, isso é que realmente é a democracia.
A reação dos reacionários e revolucionários (aliados táticos na atual empreitada contra a democracia, pela direita) à tal ofensiva tem sido a de defender a liberdade irrestrita de expressão dos indivíduos contra os que querem regulá-la a partir do Estado.
Mas ninguém nesse debate parece ter razão. A democracia não é o consenso majoritário dos indivíduos, nem o consenso das instituições estatais ou controladas pelo Estado. É o processo de formação da opinião pública: que não é a soma das opiniões privadas da maioria dos indivíduos e sim aquela que emerge da interação entre essas opiniões. Quando se forma uma opinião pública o sujeito político não é mais o indivíduo, nem o Estado - e sim a comunidade política (o ambiente onde ocorre o proferimento, as concordâncias e discordâncias e, como consequência, a polinização mútua das opiniões).
"A polis não era Atenas e sim os atenienses", escreveu Hannah Arendt (1958) em A condição humana - entendendo que a polis não era a cidade-Estado e sim a comunidade política, explicou ela, com razão (pois a pólis não era um simples povoamento, mas algo inédito, uma entidade nova que se forma toda vez que a política toma como sentido a liberdade e não a ordem).
Resumindo: se não se formarem comunidades políticas, não há democracia – e nem mesmo a tão propalada liberdade dos libertários. A democracia não é sobre coleção de átomos e sim sobre formação de moléculas (sociais). Mas vá-se lá dizer-lhes!