Estão confundindo duas coisas diferentes, embora circunstancialmente congruentes. Nos regimes democráticos há uma revolta de boa parte do público contra a maneira como o establishment político está organizado e funciona. Nos EUA, isso carreia votos para o trumpismo; no Brasil, para o bolsonarismo.
Mas não é - majoritariamente - uma adesão ideológica ao trumpismo, nem ao bolsonarismo. As pessoas votam em líderes populistas antissistema porque avaliam que é a única maneira de interromper a reprodução de um modo político de administração do Estado que lhes desagrada. E a resposta do sistema - querendo manter conservadoramente um modelo de democracia que envelheceu - não consegue apontar uma perspectiva de futuro para essas pessoas, que acham que vai sempre ser mais do mesmo se não houver um choque, uma ruptura.
Então o que fazem essas multidões descontentes? Via de regra escolhem eleger um malucão autocrático disposto a quebrar tudo: é aí que aparecem tipos como Farage (no Reino Unido), Salvini (na Itália), Trump (nos EUA), Bolsonaro (no Brasil), Ventura (em Portugal), Abascal (na Espanha), Wilders (na Holanda), Bukele (em El Salvador), Weidel (na Alemanha), Purra (na Finlândia) etc. O que há de comum entre eles? Todos são populistas. Isso tem a ver, portanto, com a crise da democracia representativa, não com uma conspiração universal da extrema-direita para controlar o mundo (a despeito de alguns, poucos, realmente conspirarem para que isso ocorra).
Entender que essa revolta tem as características de uma revolução (conquanto reacionária) é fundamental para não errar tanto. No Brasil, por exemplo, a esquerda até agora não entendeu por que Marçal teve 28,14% dos votos (ficando a menos de 1% de distância de Boulos e 1,3% de Nunes) e então prefere ridicularizar o "pobre de direita". Por isso continua errando.
Nos Estados Unidos a chamada esquerda (que lá não tem muito a ver com a esquerda populista do Brasil, do México, de Honduras, da Colômbia e da Bolívia – a não ser na sua minoritária fração identitarista ou woke) também errou e continua errando. Apesar dos avisos dos principais institutos que monitoram os regimes políticos no mundo, a esquerda (por assim dizer) americana – ou melhor, os democratas partidários que se achavam donos do establishment político – avaliaram que estava tudo bem com o regime e com sua capacidade de neutralizar investidas autocratizantes (como a do trumpismo e, mais importante, a da revolta das pessoas comuns insatisfeitas com o status quo). Alguns até apostavam – às vésperas do pleito de 2024 – que Kamala ganharia de lavada no voto popular...
Agora esses desavisados talvez compreendam por que a The Economist Intelligence Unit, já de há muito, classifica os EUA como uma democracia defeituosa (flawed democracy) e não como uma democracia plena (full democracy) - estando em vigésimo-nono lugar no ranking mundial das democracias (Democracy Index 2023). É possível que em breve o V-Dem reclassifique os EUA como uma democracia não-liberal (uma electoral democracy e não mais uma liberal democracy).
Há algo errado com o presidencialismo americano, que os democratas nunca tiveram a coragem de questionar e tentar corrigir. A arquitetura do seu sistema político é disfuncional e conspira contra o avanço do processo de democratização.
A variante americana da democracia queria, sim, ser (subjetivamente) democrática, mas os pais fundadores tinham um certo medo das pessoas comuns, das turbas sublevadas e não disciplinadas que poderiam tomar, pela demagogia, o “cetro da razão” (para usar as palavras de Madison). Eles – Jefferson inclusive, mas sobretudo Madison e Hamilton – viviam apavorados com uma imaginária “tirania da maioria” (que nunca aconteceu na história em uma democracia liberal). Acabaram constituindo (objetivamente) mais uma república dos que julgavam ser os melhores (aristoi), ou seja, objetivamente, uma oligarquia – posto que eram poucos (oligoi).
Claro que isso teria consequências, como as que estamos vendo agora.
O presidencialismo americano é meio contraditório com a democracia liberal. Permite que um chefe governe, em grande medida, por decreto, comportando-se como monarca absoluto. Mesmo na sociedade há uma expectativa de que o presidente deva ser um chefe guerreiro, que tem de ser forte e impor sua vontade (por isso Biden não prestava). Mas contra quem mesmo? Ora contra os inimigos - externos e, logo depois, desgraçadamente, também internos.
Isso abre espaço para que um chefe populista faça um governo de facção, apenas para metade da população e a outra parte que se dane (e espere mais quatro ou oito anos, que é um tempo para que o incumbente possa alterar várias regras a seu favor, sobretudo se a suprema corte estiver aliada a essa facção). Trump, embora tenha vencido no voto popular por apenas 1,5% dos votos, comporta-se como se 100% dos eleitores dos EUA o tivessem escolhido para ser uma espécie de rei. Boa parte da cultura política - e inclusive cívica - americana nunca conseguiu se desvencilhar dessa nostalgia por um rei-guerreiro. Sim, no caso americano, é uma falha “genética”.
O presidencialismo brasileiro sofre de males semelhantes, embora de origens diferentes. Lula também se comporta como se tivesse sido escolhido pela imensa maioria da população, embora tenha vencido por menos de 2% dos votos (1,8%). Como são, ambos (Trump e Lula), populistas, há muitos isomorfismos entre eles – independentemente do primeiro ser considerado de direita e o segundo de esquerda. Por exemplo, o lema de Trump “America is Back” parece uma cópia de “O Brasil Voltou” de Lula. Outro exemplo, a mania de Trump de dizer que tudo que ele faz é o maior ou o melhor do mundo, encontra eco nas falas repetidas de Lula de que seu governo é extraordinário e de que o que ele está fazendo nunca antes foi feito neste país. Trump venceu (no voto popular) por 1,5% dos votos; Lula por 1,8% - e ambos fazem governos de facção.
Este artigo não terminaria se ficássemos citando mais semelhanças. Não, não é nada demais. É apenas o populismo.