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Imagem: CBMMG/Divulgação

Não foi acidente

Tragédia que matou 39 pessoas na BR-116 é mais um exemplo de uma série de crimes que tomam conta das rodovias brasileiras


Paulo Leite

Notícias

Sociólogo e jornalista. Colunista dos programas Central 98 e 98 Talks. Apresentador do programa Café com Leite.


Para entendermos o que acontece nas rodovias brasileiras, é necessário estabelecermos, inicialmente, o que é e o que não é um acidente.

Acidentes são acontecimentos que independem das ações do homem, algo que foge ao controle do que é previsível.

Um exemplo seria um veículo que derrapa em uma estrada por conta de alguma substância na pista de rolamento, como óleo, areia, etc.

Se um veículo automotor sai sem as condições essenciais para trafegabilidade — sejam elas mecânicas, documentais ou de segurança —, ou se seu condutor não está apto para a condução por falta de documentos, condições de saúde, excesso de jornada, consumo de álcool ou drogas, tudo o que decorrer em seu trajeto deixa de ser acidente e se transforma em crime.

O ocorrido na BR-116, em Teófilo Otoni (MG), envolvendo uma carreta bitrem que transportava dois blocos de quartzito e causou 39 mortes, tem todos os elementos criminosos: um amontoado de erros de processo, decisões equivocadas e ausência de observância da legislação de trânsito.

Dados coletados pela perícia indicam que, antes de se envolver no desprendimento da carga e na colisão com outros veículos, a carreta trafegava a 132 km/h. No momento do ocorrido, em um local onde a velocidade máxima permitida era de 80 km/h, a carreta estava a 90 km/h.

Some-se a isso o fato de o caminhoneiro admitir não ter o hábito de verificar o peso do material transportado. O peso da carga era de 68 toneladas. Somando o peso do conjunto da carreta e seus dois semirreboques, o total era de 91,261 toneladas, ou seja, o dobro do permitido pela legislação de trânsito aplicável ao transporte daquela carga.

Além da alta velocidade e do excesso de peso, o exame toxicológico realizado no motorista dois dias após o acidente revelou que ele dirigia sob efeito de álcool, cocaína, ecstasy e drogas para combater o sono.

O mesmo motorista já tinha o hábito de conduzir veículos automotores sob efeito de bebidas alcoólicas. Em julho de 2022, ele foi abordado por policiais com sintomas de embriaguez enquanto dirigia um carro e acabou penalizado com a suspensão do direito de dirigir.

No entanto, é leviano atribuir a culpa somente ao motorista. Se ele não tinha o hábito de conferir o peso da carga transportada, a empresa transportadora, HMA Transportes — que funciona no mesmo endereço da HMA Granitos, em Barra do São Francisco (ES) —, é corresponsável.

A empresa tinha conhecimento das condições de transporte, do peso excessivo e da posição incorreta da carga na carreta, além de permitir que a carreta trafegasse mesmo com uma enorme quantidade de multas, muitas delas pelos mesmos motivos irregulares verificados no dia 21 de dezembro.

Note-se que, até aqui, evito o termo "acidente", dado o conjunto de evidências tão fortes que afastam o ocorrido das questões acidentais.

A ausência de fiscalização de cargas nas rodovias brasileiras, a ineficiência dos postos de pesagem e fiscalização — a maioria deles fora de funcionamento —, somada à fiscalização cada vez menos eficiente das polícias rodoviárias estadual e federal, aumenta os riscos nas estradas.

Outra questão que chama a atenção quando falamos de motoristas profissionais é o não cumprimento da exigência do exame toxicológico.

Para se ter uma ideia, o laboratório Fleury, em São Paulo, que realiza esses exames, traz dados preocupantes: 74% dos exames realizados foram positivos para substâncias entorpecentes e, em 93% desses casos, aparece a cocaína.

Acrescente-se ainda outro dado alarmante: apenas dois em cada três motoristas profissionais no Brasil estão com seus exames toxicológicos em dia, e os Detrans brasileiros descumprem a obrigação de notificar os motoristas com exame vencido.

Os Detrans de São Paulo, Paraná e Santa Catarina, por exemplo, não autuam nem suspendem as carteiras de habilitação com exames vencidos.

A punição pela lei, quase sempre lenta devido à ação de bons advogados, geralmente atinge os condutores infratores, mas quase nunca penaliza os CNPJs das empresas.

Empresas que não cumprem leis, que exigem que os motoristas se submetam a cargas horárias excessivas e fiscalizações negligentes formam um coquetel de erros e descumprimentos legais que transformam as estradas brasileiras em verdadeiras aventuras para quem nelas trafega.

* Esta coluna tem caráter opinativo e não reflete o posicionamento do grupo.
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